Tipografia — sobre letras, fontes e pixels

Origens e processo evolutivo da escrita e suas formas foram tema deste bate-papo informal que tive o prazer de participar. Aqui, de forma resumida, deixo referências e links para complementar.

Henrique Iamarino
7 min readNov 24, 2020
Eis nosso roteiro de viagem :)

Da fala ao símbolo

Pictogramas traduziam objetos. Ideogramas podiam representar ideias e ações. Hieróglifos, por sua vez, são símbolos que podem representar objetos, ideias e ações. Nesta evolução da linguagem pictórica adotada no Egito nasce também a representação sonora dos símbolos.

Cavernas de Lascaux, França / Hieróglifos em Luxor, Egito.

Do Símbolo à Norma (História)

Fenícios entre os mais antigos alfabetos registrados, composto já de letras em desenho simplificado. Gregos evoluíram as ideias fenícias gerando um alfabeto mais moderno. Romanos expandiram e evoluíram o alfabeto grego, inovando no desenho ao adicionar extensões nas extremidades das letras (só maiúsculas): as serifas.

Alfabetos Fenício, Grego e Romano — evolução compartilhada

Roma e a origem das Serifas

Nossas serifas, detalhes que diferenciam sua Times New Roman da Arial no Word, são uma estilização da técnica do entalhe em pedra. As terminações das letras esculpidas careciam de profundidade por uma característica da ferramenta (cinzel). A solução visual foi prolongar as extremidades no rascunho com pincel, o que adicionou pequenas extensões achatadas ao fim das letras.

Inscrição típica romana, entalhada em mármore. Roma, Itália.

Da norma à máquina (História Pós-Roma)

Carlos Magno, em 732, encomenda um sistema de escrita que simplifique o trabalho dos monges copistas. Nascem versões reduzidas das caixas altas romanas, as minúsculas Carolíngeas, que posteriormente são aperfeiçoadas.

Minúsculas Carolíngeas e a influência da Caligrafia no desenho das letras

Neste processo surgem novos detalhes nas serifas de acordo com o uso da pena e tinta no desenho das letras. Observamos essa origem caligráfica nas terminações (bolinhas) na extremidade de letras como o C, J, Y, R e G (Zoom na Times New Roman ou Georgia).

Vale registrar que nossa visão histórica é bastante limitada às descobertas e relatos Ocidentais. Enquanto na Europa a comunicação era toda escrita a mão, já no século XI se imprimiam ideogramas na China usando pastilhas de argila.

Tipos móveis chineses (séc. XI) / Tipo padronizado por Gutenberg em sua máquina impressora

Da máquina à arte — Gutenberg e a impressão

Johannes Gutenberg nasce em 1400, em Mainz, Alemanha. Por influência do pai, um cunhador de moedas, cresceu atuando na fundição e modelagem de jóias e objetos. Inspira-se nas medalhas dos peregrinos e cria tipos/letras móveis usados numa prensa para composição de páginas.

Em 1452 recebe o apoio de um investidor (Johann Fust), num modelo parecido com o sistema de startups atual. Inicia a composição de sua famosa Bíblia. Do ponto de vista estilístico, os tipos esculpidos por Gutenberg remetem ao estilo caligráfico de seu tempo e região. O chamamos de Blackletter, ou padrão gótico de letras.

Johannes Gutenberg / A famosa Bíblia, seu primeiro livro impresso, no estilo de desenho da época

Os peregrinos e suas medalhas

A Europa pós-Cruzadas sustenta um mercado muito atrativo para produção e comercialização desses itens de memorabilia que celebram episódios da viagem à Terra Santa. O folclore em torno das medalhas justificava que elas poderiam absorver e refletir ‘o sagrado’ presente nas vivências e milagres das experiências — que não podiam ser levados de volta em forma de relíquias.

As medalhas dos peregrinos e sua representação na arte medieval

O projeto da Bíblia é finalizado 3 anos depois, com 1800 cópias impressas. As vendas praticamente inexistem, o projeto é um fracasso retumbante. Gutenberg é processado, perde sua invenção e morre anos mais tarde em dificuldades. O investidor, Johann Fust, fica com o negócio e encontra outros abnegados que começam a refinar a sistemática e maquinário de Gutenberg.

Os impressos e a evolução dos tipos

Tipos móveis ainda ecoam em nossas ferramentas atuais de Design

Sejam nas configurações do Word ou nos softwares profissionais mais avançados, quase tudo em Tipografia ainda se relaciona à invenção de Gutenberg. Cito termos como a Linha de base (Baseline), Entrelinhas (Leading), Entreletras (Kerning), Caixas Altas e Caixas Baixas — tudo vêm desse universo real, de uma oficina onde letras móveis e individuais são arranjadas em páginas e carimbadas em papel.

Na Itália do século XV, Nicolas Jenson inspira-se nas ruínas romanas e cria novas formas de letras. Seguindo padrões geométricos e Humanistas ele cria o estilo ‘românico’, mais legível e adaptado. Também inventa as letras itálicas afim de compactar mais caracteres em menos espaço de papel.

Evoluções de desenho depois da criação de Nicolas Jenson

Daí em diante os estilos se desenvolvem enquanto a tecnologia se espalha. As letras: tornam-se mais altas e mais largas. E não deixam mais de se transformar:

  • Baskerville adiciona contraste ao desenho das letras;
  • Caslon desenha a primeira opção Sans Serif, removendo os detalhes já explicadas;
  • A Bauhaus, escola de arquitetura da Rep. de Weimar (Alemanha no entreguerras) e Paul Renner inovam com um estilo ainda mais ligado à Geometria. Nasce a Futura;
  • A eterna Helvetica é criada na Suiça, berço do Design Internacional, enquanto estudiosos e designers italianos e alemães fogem do terror dos regimes totalitários de Mussolini e Hitler;
  • Cito ainda lendas como Bodoni, Garamond, Gill, Lubalin e Hermann Zapf.
Todos os modelos de desenho citados acima
Por um século a herança de Gutenberg foi carregada por Máquinas de Escrever. Mas a customização não era uma possibilidade
Computtadores antes de 1984 / Jobs e Wozniak em ação / O Macintosh, em 1984

Da Arte ao Pixel

Por ter estudado Caligrafia na juventude Steve Jobs desejou inserir a elegância de uma Tipografia bem constituída em seu primeiro Macintosh, em 1984. A equipe de Design venceu inúmeras dificuldades (incluíndo o gênio do chefe) e, liderada por Susan Kare, embarcou variadas Famílias Tipográficas no sistema operacional que ‘mudou o jogo’ da computação pessoal.

Susan Kare, pilar do nascimento da Tipografia digital

Mais tarde, Jobs refletiu sobre esse período em um famoso discurso:

Quando cursei Caligrafia na Universidade aprendi sobre fontes com e sem serifa, sobre o espaçamento (preto/branco) entre diferentes combinações, sobre o que faz excelente uma tipografia excelente. Foi sobre beleza, sobre história, sobre essa sutil arte que a ciência não pode capturar — e achei tudo fascinante. Nada disso teve aplicação prática em minha vida. Mas 10 anos mais tarde, enquanto projetávamos o primeiro Macintosh, tudo ressurgiu pra mim. Criamos o primeiro computador com a beleza da Tipografia.

Depois do Macintosh e seu processador de palavras e gráficos com variedade de fontes, tudo mudou. A Microsoft prontamente acompanhou esta inovação. E, com justiça, popularizou definitivamente a Tipografia com seus pacote Office e o MS Word.

MS Word e a popularização definitiva da Tipografia na História universal

Sutil arte que a Ciência não pode capturar

A Tipografia consiste num trabalho muito ‘humano’ do que ‘técnico’. Existem pouquíssimas regras para o desenho dos tipos e nada se sobrepõe à observação constante e análise das formas das letras e as relações das combinações múltiplas. É muito mais feeling do que fórmula. Um exemplo bastante visual disso é o ajuste de ‘kerning’, estudo de espaçamento da relação de um caractere com cada um de todos os outros integrantes do mesmo alfabeto.

Kerning, o espaçamento complicado entre cada letra e uma outra qualquer do alfabeto

Em tempos de Emojis, vale o registro destes pictogramas contemporâneos. Apesar de não fazerem parte das fontes (arquivos de desenho tipográfico) e sim dos sistemas operacionais, eles agora acompanham toda nossa comunicação digital e merecem atenção, quando falamos de comunicação escrita.

As conhecidas ilustrações ‘fofinhas de carinhas amareladas’ se originaram nos Emoticons — técnica engenhosa que nós, primeiros usuários da internet, aplicávamos ao simular desenhos com os caracteres comuns.

Exemplos de Emoticons

No episódio final dos podcasts deixei essa reflexão: será que a utilização constante de Emojis poderá afetar negativamente as conquistas da escrita e da comunicação? Estaríamos retornando aos hieróglifos? Ou, de forma positiva, seu uso será cooptado pelo saber universal e no futuro teremos a integração disso à própria Tipografia, com variações de estilos e formas?

Obrigado por sua atenção e carinho com este texto. Se puder deixe sua opinião nos comentários e ouça o podcast Uma Conversa.

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Henrique Iamarino

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